Faz de conta: você acordou, ligou para o salão e marcou um horário. Na hora do almoço, foi lá e pediu: Corta bem curto. O cabeleireiro não acreditou no que ouvia. Afinal, seus quase cinquenta centímetros de cabelo sempre foram, na sua cabeça (literalmente), uma espécie de atestado da sua feminilidade. Mas agora eles teriam de ser curtos. Para que suas ideias ficassem longas. Ele colocou a mão um pouco abaixo do seu ombro: Mais ou menos aqui? Você segurou a mão dele, levou-a na altura da sua orelha, e disse:
Tosa.
Depois você passou naquela loja onde tem uns vestidos moderninhos e coloridos. Você entrou e pediu aquele cor de laranja com borboletas, muito mais curto do que os que você costuma usar. Aproveitou e pediu a sapatilha da vitrine. Arrancou o seu terninho bege, sua camisa branca e seu escarpim marrom. Deixou tudo por lá mesmo, no provador. E quando a vendedora perguntou o que fazer com aquilo, você disse:
Queima.
Quando você retornou ao trabalho, uma hora depois do horário de costume, com aquele vestidinho e com os cabelos daquele jeito, a roda em torno de você foi se formando. Uns, animadíssimos. Outros, nem tanto. Alguns reprovaram. Como as coisas já não andavam muito bem por ali, sua chefe lhe chamou no final do dia para conversar, e avisou que as coisas não poderiam continuar daquele jeito, ou ela teria que substituir você. E você disse:
Substitui.
Saindo de lá deu vontade de jantar naquele bistrô aonde você acha que só deveria ir no dia do seu aniversário ou outra data importante. Você mal encostou seu carro e já veio o dono da rua, dizendo que eram dez pratas para parar ali. E, como você não deu bola, o homem começou aquela conversinha surrada dizendo, na entrelinha da entrelinha, que um eventual não-pagamento antecipado incorreria em riscos indesejáveis na pintura do seu bólido. Você pegou o celular, digitou três números, mostrou o visor para o homem e, já com o dedo na tecla “ligar”, disse:
Risca.
Faz de conta que você chegou em casa e sua filha de dezessete anos estava na sala com o namorado. Você teve que contar de novo a história daquele vestido e daquele cabelo e, como chovia, sua filha sondou se o rapaz poderia dormir ali. E, enquanto jogava no lixo aquela agendinha que você só usava no trabalho, você disse:
Pode.
Quando se deitou para dormir, aquele anjo que costuma vir conversar com você antes do sono se empoleirou na cabeceira da sua cama. Elogiou o cabelo, o vestido, a decisão no trabalho, o presente de não-aniversário, o chega-pra-lá no dono da rua, a atitude com a filha. Só por curiosidade, perguntou que bicho havia mordido você. E você, se ajeitando no travesseiro e já desligando o abajur, disse:
Nenhum.
No dia seguinte, vendo que eram dez da manhã e você ainda não havia se levantado, sua filha entrou no quarto, vocês conversaram e no final ela perguntou como é que vocês viveriam dali para frente. Com certa ironia, ela arriscou dizer que com as bolsas e os badulaques que você produzia e vendia nos finais de semana é que não seria. E você disse:
Sim.
À tarde, você procurou o dono daquele galpão que você havia visto para alugar, perfeito para uma oficina, e fez uma oferta. O homem coçou a cabeça, pediu um pouquinho mais, e você disse:
Fechado.
À noitinha, você foi até a casa dos seus avós, assim, de surpresa. E, de surpresa, você os beijou. E quando eles perguntaram o que era aquilo, você disse:
Amor.
Faz de conta que foi assim. Faz de conta que foi desse jeito que você virou a mesa. Que resolveu não perder mais tempo, fazer o que gosta e ser do jeito que você, só você, acha que fica mais bonita.
Faz de conta que você morreu. E que alguém lhe deu a oportunidade de voltar para um terceiro tempo.
Então. Agora vai lá e faz tudo de verdade.
Retirei o texto de um blog que não me recordo, mas que estava linkado em outro que acompanho...
Achei uma ótima reflexão, resolvi dividir...

3 comentários:

:D

Odiar é um verbo que usamos sem sequer considerar o que ele realmente significa. Na maioria das vezes nem odiamos mesmo, é uma coisa de liberar qualquer sentimento ruim que fica na garganta.
E obrigada pelo conselho de outro dia, achei bastante sensato. Foda que o medo nos paralisa um tanto. e eu odeio sentir medo.

Oi!

Esse texto é de autoria de Silmara Franco. Você pode encontra-lo no blog da autora:
http://fiodameada.wordpress.com/2009/07/22/brincadeira-seria/
Ela fica feliz da vida qdo dão os devidos créditos ao que ela escreve.
Abçs

Do que eles dizem...

Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
(Oscar Wilde)

Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo.
(Luís Fernando Veríssimo)

Liberte-se da escravidão mental, nínguém além de você pode libertar sua mente.
(Bob Marley)

Quero ter alguém com quem conversar. Alguém que depois não use o que eu disse contra mim... Nada mais vai me ferir, é que já me acostumei, com a estrada errada que eu segui, com a minha própria lei...
(Renato Russo)

Do que elas dizem...

Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo.
(Clarice Lispector)

Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.
(Lya Luft)

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos-- dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
(Adélia Prado)